Democrático...
ou “viagem desde o castelo das cinco quinas até aos
túmulos de O Mestre de Avis e O Formoso... de escadote”
Depois de um
longo período de autoisolamento, homem de 68 anos vítima de acidente na via em
frente à sua moradia!
Esta frase com
que iniciei o texto que me propus escrever, poderia muito bem ser o título
bombástico de uma notícia de jornal, ou mesmo televisiva, neste tempo em que as
mortes que vão sendo anunciadas são essencialmente aquelas que resultam do
efeito maléfico da pandemia, mortes essas que, por força de as ouvirmos
diariamente, já não nos deixam a mesma sensação de vazio e dor que nos
transmitiam nos primeiros dias. É algo estranho, mas é um facto.
Um tal título
poderia provocar reações como “ coitado, a cumprir à risca o isolamento e morre
assim, atropelado na via pública?”
Acontece que o
tal homem não morreu, nem ficou doido, nem sequer foi atropelado, e que o
desastre viário em questão não foi nem
de carro, nem de mota, autocarro ou camião. Tratou-se de um desastre de
escadote!
Passo a contar o
que se passou. O tal indivíduo cujo nome é... Não !Ele pediu-me que não o
nomeasse e, por isso, para não cair nessa tentação, a narração continua na
primeira pessoa, fazendo de conta que tudo se passou comigo.
A moradia que é mencionada no primeiro
parágrafo do texto, de cuja varanda se avista o Castelo das Cinco Quinas, característica que torna este castelo único no país e na cidade que já foi vila e cujo nome rima com Portugal, é uma casa absolutamente normal. Oferece algumas condições para uma
clausura em relativo bem-estar, se é que se pode falar em bem-estar numa
situação destas...Uma das boas particularidades que possui é que tem algum
terreno à volta, o que permite que nos movimentemos nele, fazendo alguma
manutenção física e psíquica, sem que nos cruzemos com ninguém. No terreno
existe alguma relva que necessita de ir sendo cortada, algumas plantas
rasteiras, algumas árvores que também precisam de manutenção, o que nas atuais
circunstâncias até é bom... mesmo para quem, como eu, não tem nenhuma apetência
por essas atividades.
Entre essas
árvores está uma magnólia já com alguns anos, que estava a merecer uma especial
atenção, porque já estava muito alta e necessitava ser desramada, sobretudo no
seu cerne, onde os ramos subiam na perpendicular, alcançando uma altura talvez
exagerada. Subindo até à zona de corte, cortei as pernadas em questão.
Desci da
magnólia e, apreciando o efeito do corte, verifiquei que, realmente, estava
suficientemente mais baixa mas bastante desconchavada, feia de aspeto. Decidi
melhorar esse aspeto cortando vários ramos mais salientes para, assim, a
arredondar, que, logo, logo, ficaria mais bonita.
Para cortar ramos
onde não chegava procurei servir-me do escadote. E foi quando estava a tentar
cortar um que dava para estrada que o desastre aconteceu. O escadote, falso
como Judas, ou mais, começou a entortar-se, a cair, devagar primeiro, mas
aumentando repentinamente a velocidade da queda, e eu fui com o escadote até lá
para o meio da via, o que torna este um acidente viário. E muito vário, varião,
pela falta da sageza do interveniente, eu!
Espiparrei-me no chão. E fiquei sem fôlego e
com dores, na nádega direita, nas costelas direitas, no cotovelo direito, nos
dedos da mão direita. Consegui levantar-me. Encostei-me ao muro da minha casa
durante alguns minutos para recuperar o fôlego e fui arrumar o maldito escadote
e instrumento de corte que estava a utilizar. E lá me safei desta para continuar
a clausura. Mais dorido, é bem verdade...
Dizem que o
vírus que nos assola, que nos devasta, que nos aterroriza, e que provoca o
isolamento de tantos de nós, é um vírus democrático. Mas será que isso
corresponde inteiramente à realidade?
Quando disse que
tenho estado isolado na minha moradia, isso é, desde logo, um pequeno privilégio
meu, relativamente a outros que vivem em apartamentos, com espaços de
utilização comuns, como escadas, elevadores e parqueamentos, onde o contacto
com outros é quase impossível ser evitado. Estas pessoas estarão, pois, mais
expostas ao contágio.
Não falando dos
sem-abrigo e dos perigos a que estão expostos, aproveitando para louvar aqueles
voluntários que se disponibilizaram, em missão solidária, para deles tratarem;
nem dos utentes dos lares, tâo frágeis e vulneráveis apesar dos cuidados com
que têm vindo a ser tratados pelos profissionais destas instituições.
Falemos também, por
exemplo, de compras. Sim porque as pessoas não podem deixar de comer... Neste
aspeto sabemos que há os que sabem comprar por internet, sabem e podem, porque
para isso têm meios, e fazem encomendas avultadas porque têm arcas frigoríficas
onde conservar os produtos que lhes vêm trazer à porta. E, se não lhos vêm
trazer, vão buscá-los, mas às carradas, saindo o mínimo possível. Outros há que
não têm nem internet, nem arcas, nem dinheiro... E esses têm portanto que sair
mais vezes para irem comprando o que podem, sendo por isso mais vulneráveis ao
contágio.
Expostos ao
contágio estão permanentemente médicos, enfermeiros, e outros que lidam
diariamente com a doença, apesar dos equipamentos de proteção que devem usar.
Estas pessoas são, sem sombra de dúvida, dignas da nossa admiração, do nosso
apoio, do nossa agradecimento.
Não vou insistir
nesta tónica, porque acho que já consegui lançar alguma confusão nos espíritos
sobre a democraticidade do vírus. Afinal é só essa a minha intenção, porque sei
que a confusão leva à reflexão que fará nascer a luz... Em jeito de síntese,
vou dizer que ele, o vírus, quer ser democrático e contagiar a torto e a direito,
mas não pode, e ainda bem, devido às circunstâncias de cada qual. Às circunstâncias
e às atitudes mais ou menos corretas. Contagia os que apanha a jeito,
independentemente do escalão que ocupam na pirâmide social, disso não tenho
dúvidas. Só que alguns estão naturalmente muito mais a jeito do que outros...
Se falarmos sobre os efeitos do contágio, então, não nos restarão dúvidas de
que os resultados continuam a provar que a velha relação mar, rocha e mexilhão
continua a existir. Em suma, é bom que o comportamento de todos seja o de evitar pôr-se a jeito. Cumprir à
risca as regras que a nossa democracia nos dita é o melhor remédio contra este
vírus, que dizem ser democrático, que vai
pondo a nu bastantes desigualdades.
Apenas mais umas
palavras para falar do contágio do primeiro-ministro do Reino Unido, ele que,
numa primeira abordagem, até terá desvalorizado os efeitos do vírus, acabou por
ser contagiado e esteve à beira de ser vítima da gadanha da covid 19. Se o
tivesse sido , não seria como a grande maioria, mais uma vítima ilustre
desconhecida, claro que não... Não morreu, e ainda bem, porque, segundo ele
próprio disse, já em isolamento numa mansão de férias no campo, no hospital
médicos e enfermeiros, de entre os quais fez questão de salientar um português,
o Luís, tudo fizeram para o manter vivo. Será que Boris Johnson não irá pensar
duas vezes, ou pelo menos uma, que talvez não tenha sido assim tão boa a ideia
de levar o Brexit avante, quando, afinal,
quem o salvou foram médicos e enfermeiros da União Europeia?...
Já agora, e
porque me parece vir a talho de foice, quando o mesmo primeiro-ministro inglês põe Portugal
fora dos corredores aéreos, incluindo nos mesmos países cuja situação pandémica
é claramente pior do que aquela que este país à beira mar plantado tem vivido,
estará a meter na gaveta a aliança anglo-portuguesa e o tratado de Windsor? Os nossos reis que assinaram
uma e outro, respetivamente, o formoso
e o grão-mestre de Avis, devem dar voltas de desassossego sob as funéreas
lousas...
J.D.
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