Deveras decepcionado
por VASCO GRAÇA MOURA
O Acordo Ortográfico significa a perversão intolerável
da língua portuguesa. Sempre admirei o saber jurídico, a obra académica e a
postura cívica do meu amigo Jorge Miranda. Mas não posso concordar com as
considerações que ele faz sobre tão sinistro instrumento, no Público de
13.7.2011.
Uma pessoa pode deixar-se embalar por uma concepção
tão poética quanto irrealista da pretensa unidade ortográfica (ontológica,
mítica, sublimada...) da nossa língua; pode mesmo prestar tributo a um certo
darwinismo, em que o facto de o Brasil ter 200 milhões de pessoas seria razão
bastante para sacrificar a norma seguida por mais de 50 milhões de outros seres
humanos...
Mas o que ninguém pode é passar em claro que o AO leva
ao agravamento da divergência e à desmultiplicação das confusões entre as
grafias e faz tábua rasa da própria noção de ortografia, ao admitir o caos das
chamadas facultatividades. Sobre tudo isso existe, de há muito, abundante
material crítico, com destaque para os estudos essenciais, demolidores e, note-se,
não contrariados, de António Emiliano.
Ora sendo JM um constitucionalista eminente, é nessa
perspectiva que convém interpelá-lo.
O AO não está nem pode estar em vigor. A vigência de
uma convenção internacional na nossa ordem interna depende, antes de mais, da
sua entrada em vigor na ordem internacional. Terá o AO começado a vigorar no
ordenamento internacional quando há Estados subscritores que ainda não o
ratificaram, decorridos mais de 20 anos sobre a sua celebração? E esse mesmo
facto não inviabilizará o próprio AO, por impossibilidade manifesta do fim que
ele se propunha e que era o de alcançar uma "unidade" ortográfica
aplicável a todos aqueles Estados?
Por outro lado, e quanto ao chamado segundo protocolo
modificativo, que não foi também ratificado por todos os Estados que o
subscreveram, poderá a ratificação por três desses Estados sobrepor-se aos
ordenamentos constitucionais dos restantes e vinculá-los a todos, levando-os a
acatar, por esse expediente trapalhão, algo que eles como Estados soberanos
também não ratificaram? Significará isto uma vigência do protocolo na ordem
externa, de modo a que ele possa vigorar em Portugal ou aplicam-se ao caso os
mesmos princípios que acima referi?
Uma outra ordem de questões prende-se com um
pressuposto essencial. O art.º 2.º do AO exige que, antes da sua entrada em
vigor, os Estados signatários tomem, através das instituições e órgãos
competentes, as providências necessárias com vista à elaboração "de um
vocabulário ortográfico comum da língua portuguesa, tão completo quanto
desejável e tão normalizador quanto possível, no que se refere às terminologias
científicas e técnicas".
Esse vocabulário comum nunca existiu. Não há notícia
de que esteja em vias de ser elaborado, nem de encontros de instituições ou
órgãos competentes dos oito países de língua portuguesa para tal efeito.
Sendo assim, como é que se pode sustentar a vigência e
aplicabilidade do AO?
Por último, está mais do que demonstrado o risco de a
língua portuguesa, tal como a falam os mais de 50 milhões de pessoas que não
seguem a norma brasileira, vir a ser muito desfigurada, na relação entre grafia
e oralidade, em especial no tocante à pronúncia. Vários especialistas se têm
referido a isto e, já em 1986, nada menos de 20 colegas de JM, docentes da Universidade
Clássica (Faculdade de Letras), sustentaram, entre outras críticas fortes e
fundamentadas, que todas as alterações introduzidas num dado sistema gráfico
deviam ser equacionadas também em função da relação entre o oral e o escrito,
sendo "inaceitável que ajustes ou reformas linguísticas potenciem mudanças
linguísticas em sentidos previsíveis ou imprevisíveis".
Sendo assim, como é que se pode negar a violação dos
artigos da Constituição que protegem a língua portuguesa não apenas como factor
de identidade nacional mas também enquanto valor cultural em si mesmo, em
especial os art.os 9, alíneas e) e f) e 78, alíneas c) e d)?
Ponderando estes e outros aspectos, JM só não poderá
ficar "dececionado" com tais aberrações porque
"dececionado" é uma grafia criminosa. Mas espero francamente que ele
se sinta deveras decepcionado!
O ensino do português e o Acordo
Ortográfico
por VASCO GRAÇA MOURA, 22 janeiro 2014
Já tive ocasião de saudar aqui o novo programa de
português do ensino secundário. Penso que ele restitui a esta disciplina uma
dignidade, uma qualidade e um sentido que ela tinha perdido com as inovações
catastróficas preocupadas fundamentalmente com o "eduquês", ou, como
leio no último Expresso, com uma série de contorcionismos retóricos do género
de ver os professores "a ter de debitar" as características de cada
texto, "aulas reprodutivas", "pedagogia burocrática", baixa
da "motivação dos alunos", coisas assim, retumbantes e medonhas, que,
além de assegurarem um acesso luminoso ao português, eram evitadas até agora
pelo programa em vigor, em que o saber não precisava de ser construído sem um
conjunto adequado de leituras ou, sabe-se lá!, não precisava de ser construído
de todo, mesmo sem quaisquer leituras.
Ora, se pensarmos que não pode ensinar-se nem
estudar-se a língua portuguesa sem um contacto elementar com os seus
testemunhos literários principais produzidos ao longo da História, basta
percorrer a lista de obras do novo programa para se ver que ele corresponde a
um cânone mínimo, repito, mínimo, da nossa literatura e que, mesmo admitindo-se
que poderia comportar alternativas, é pedagogicamente indispensável para o
estudo em questão. Das críticas que lhe são feitas, de resto, fica-se com a
sensação de que o problema está muito mais do lado dos professores do que do
lado dos estudantes, estando aqueles, até agora, pelos vistos dispensados de
"aulas reprodutivas" e de "pedagogias burocráticas" para
atingirem o nível de ensino da língua a que se chegou nesta matéria.
Com estas questões do programa de português para o
secundário cruza-se, mais uma vez e inevitavelmente, a do Acordo Ortográfico,
objecto de um belo artigo de José Pacheco Pereira no Público de sábado. Em que
ortografia vão os nossos grandes autores ser servidos nas escolas? Serão
implacavelmente desfigurados pela aplicação dessa coisa sem nome? Ou virá o
Governo a tomar providências rápidas para, pelo menos em parte, remediar a situação?
A crítica definitiva do Acordo Ortográfico, nos planos
científico, jurídico, político e sociocultural, está feita há muito, pelo que
nem sequer vale a pena retomá-la. Mas torna-se necessária uma solução que, de
resto, e como Pacheco Pereira também salienta, sairá tanto mais cara ao País
quanto mais tarde ela for tomada. Os custos directos e indirectos serão muito
altos, mas arriscam-se a tornar-se astronómicos se se continuar a perder tempo.
Trata-se de uma questão também política que, pela sua dimensão internacional,
requer um particular tacto no seu tratamento e cuja solução, segundo creio,
poderia ser encontrada em três planos.
Em primeiro lugar, o Governo poderia negociar com os
editores de livro escolar, que não são assim tantos, o abandono do esquema
actual de aplicação do Acordo nas edições escolares, tendo em conta o tempo de
validade dos livros e manuais existentes e o seu ritmo de substituição
Entretanto, o Governo suspenderia a aplicação do
Acordo Ortográfico decretada por uma Resolução do Conselho de Ministros de
ultrajante memória, determinando que, na medida do possível, se voltasse já ao
sistema anterior (afinal o ainda vigente, quer se queira quer não...).
Em terceiro lugar, no plano internacional, seriam
desencadeadas as medidas necessárias a uma revisão imediata do Acordo
Ortográfico pelos oito países de língua portuguesa (incluindo portanto Timor).
Estas três dimensões do problema não terão nunca
uma solução satisfatória, atendendo aos malefícios já provocados e aos que se
desenham no horizonte. Mas na situação em que nos encontramos, não se pode
esperar que haja muitas outras saídas possíveis e esta seria certamente uma
delas.
Para além dos objectivos visados no curto, no
médio e no longo prazo, no plano escolar deixaríamos de ter, desde já, os
nossos grandes autores barbaramente estropiados por uma grafia abstrusa. E
isso, agora que o ensino do português vai mudar no ensino secundário, é de uma
importância primordial.
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