A coa das pichas!
Teixeira de Pascoaes terá dito,
aquando da implementação de um outro qualquer acordo ortográfico anterior ao
que agora provoca em nós tantos momentos de reflexão e alguns de preocupação,
que a perda do y na palavra abysmo era desprovida de qualquer lógica, se não
absolutamente ilógica e irreparável, pelo facto de ser o y o traço distintivo
que dava à palavra a profundidade subjacente à ideia que veicula.
Se acreditarmos em Saussure, e só
nos resta acreditar atendendo a que Ferdinand de Saussure é, nem mais nem
menos, o pai da linguística moderna, o signo linguístico (a palavra) é
imotivado, querendo isto dizer que não há nada na forma que sugira o sentido. E
assim sendo, o que Teixeira de Pascoaes afirma quanto à palavra abismo não é
mais do que uma, mui respeitável, opinião pessoal sem fundamento científico.
Estaremos todos de acordo, a não
ser, quiçá, o governo da nação, que o país não se encontra à beira do abismo, mas,
sim, dentro dele e há muito tempo! Trata-se portanto de um grande abysmo, com y
para enfatizar a profundidade, que parece não ter fundo. Quando bateremos no
fundo? Não o sabemos. Sabemos é que o baque vai ser tremendo… Mas parece ser um
baque necessário, para que a queda livre termine de uma vez por todas. Não
podendo ir mais para baixo, porque nos espipámos no fundo, só nos resta
encetar a escalada das paredes do buraco que durante tanto tempo assistiram à
nossa rota descendente.
Muito se tem falado, uns a favor,
outros contra, do novo acordo ortográfico, que afinal já não é assim tão novo,
porque data de 2009.* A implementação deste acordo, como a de qualquer outro,
obriga a alterações, que nem todos estão mentalmente disponíveis a assumir. Daí
a controvérsia.
Os seus proponentes dizem que
muitas das alterações assentam numa base fónica, argumentando-se que, se o que
não se ouve não se escrever, se está a descomplicar a ortografia. Nem sim nem
nim, quanto a mim. Não vou dizer taxativamente que a palavra semirreta, que o
novo acordo deu a luz – ia dizer pariu, mas arrependi-me a tempo- tenderá a ser
lida como tantas outras que terminam em eta, como marreta, forreta, caneta,
perneta, maneta… Porém, se tal acontecer, tal haverá de provar que afinal o que
não se lê também faz falta, e dará uma certa motivação à palavra, que a mim,
assim pronunciada, me sugere mais uma qualquer arma de arremesso “ atira-lhe
coa semirreta” ou “dá-lhe uma semirretada”.
Então e o h inicial, que não é
pronunciado, por que é que o acordo não o elimina? Não o elimina porque não. E,
por um lado, ainda bem, uma vez que o h inicial é ponto de partida para uma
regra do acordo: antes de palavras iniciadas por h, os prefixos são delas
separados por hífen, mesmo o prefixo co, que quase ganhou imunidade ao hífen.
Veja-se a forma co-herdeiro e não se considere a forma coonestar como exceção
porque esta é uma forma latina.
Há, na verdade, incongruências no
acordo que podem lançar confusão no espírito do normal utilizador da
ortografia.
Por exemplo, no caso das palavras
justapostas com preposição ou pronome, ou outro utensílio gramatical, diz o
acordo que estas, as ditas locuções, perdem o hífen. Contudo, de imediato
apresenta uma série de exceções, algumas compreensíveis porque subordinadas a
uma regra, a de que palavras que designem espécimes botânicos ou zoológicos
mantêm o hífen, e outras só porque sim, o que torna bem mais difícil a escrita
escorreita. Nestes termos, o acordo obriga a escrever com hífen palavras como
andorinha-do-mar ou mal-me-quer e todas as que, como elas, têm como referente
exemplares zoológicos ou botânicos, como, por exemplo, reigrás-dos-ingleses ou
rei-do-mar (sinónimo de pica-peixe). Tudo normal, tudo bem, se é regra,
cumpra-se. Todavia, já é muito mais difícil compreender e aceitar sem qualquer
reticência ou renitência ou penitência, dependendo do grau de rejeição, as
exceções expressamente referenciadas no acordo, num total de sete, o que num
acordo que pretende descomplicar, só complica. Exemplificando, porque cargas de
água COR-DE-ROSA terá de continuar a grafar-se com hífen, quando COR DE LARANJA
o perdeu? Eu até nem compreendo muito bem como é que os responsáveis de PSD
ainda não vieram a terreiro manifestar o seu descontentamento pela deferência
ao rosa… E porque é que será que À-QUEIMA-ROUPA ou AO-DEUS-DARÁ ou MAIS-QUE-PERFEITO
ou ÁGUA-DE-COLÓNIA, ARCO-DA-VELHA, PÉ-DE-MEIA, hão de merecer manter a
hifenização se as compararmos com tantas outras palavras que a perdem, como, a
título de exemplo, pé de atleta ou moço de recados ou fim de semana. Claro que
não vou pretender reclamar a reifenização de coa das pichas, já que é esta uma
palavra apenas do vocabulário passivo da maior parte das pessoas, e de muito
poucas. Também qual dos comuns dos falantes é obrigado a saber que os
pescadores do Mondego utilizam uma rede típica e ainda por cima que essa rede
se chamava, antes do acordo, côa-das-pichas? Mas há tantas outras palavras
diariamente utilizadas por todos que mereceram tratamento diferente sem que se
encontre justificação plausível… Será que teremos que decorar as sete exceções
expressas no acordo? Não seria mais funcional admitir que estas exceções deixavam
de o ser?
Para terminar, e porque vem a
talho de foice (sem qualquer hífen…), já que a utilizei no parágrafo anterior, consideremos
a palavra reifenizar, formada a partir da junção do prefixo re com a palavra
plena hifenizar. Será que se escreve como eu a escrevi? Não será melhor grafá-la re-hifenizar, respeitando a regra da
hifenização antes de h? Nenhuma das hipóteses é considerada no dicionário… Mas
o que é facto é que o prefixo re e a palavra hifenizar andam por aí e não há
nada que nos proíba de juntar as duas, para transmitir a ideia de voltar a
hifenizar. A julgar pelo comportamento do prefixo re, que não aparece em
nenhuma situação separado da palavra seguinte, e que provocou a perda do h
inicial daquelas com as quais se juntou sem hífen, como reabitar, reabituar,
reabilitar, etc, podemos ser levados a concluir que nestas situações, não
contempladas no dicionário, o prefixo re se deve fundir com a palavra seguinte
depois de esta perder o h inicial. Veja-se, também, reigienizar (no sentido de
voltar a higienizar, igual a relimpar, que também não vem nos dicionários). Apesar
da tendência à leitura com ditongação…
Estas considerações têm apenas o
intuito de confundir… Porque a confusão leva à discussão e da discussão há de
fazer-se luz.
E, já agora, cuidado com os bicos
de papagaio, os maus, sem hífen! Não os outros, os com hífen, porque esses não
fazem mal a ninguém.
Joaquim Rodrigues Dias
* 2009 é o ano em que se avança para a implementação das alterações previstas. O texto do acorda remonta ao ano de 1990.
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