Acordo Ortográfico:
para além de Portugal
Carlos Reis
1. Começo por três afirmações preliminares. Primeiro: uma declaração de
desinteresses. Não tenho interesses económicos, dependências políticas ou
outras, quando me dedico a analisar a questão do Acordo Ortográfico; aliás, as
minhas posições nesta matéria não são novas, já que as defendo desde 1990.
Segundo: uma declaração de interesse. Debato o Acordo Ortográfico porque me
interessa a Língua Portuguesa e preocupa-me o seu destino, também à escala
internacional. Terceiro: uma declaração de índole ético-cultural, dividida em
três frentes. Uma, que é a do respeito que igualmente me merecem todos os
países onde o Português é língua oficial; outra, que é da honestidade
intelectual que preside às minhas reflexões sobre este tema; uma outra ainda,
que a da afirmação, relativamente a este tema, de convicções fortes, mais do
que de certezas dogmáticas ou aspirações a ser dono da verdade.
2. Posto isto, começo. Existe uma contradição curiosa entre a forma
como vivemos a nossa relação com a língua e os termos em que a postulamos como
património colectivo. Essa contradição estabelece-se pela tensão entre duas
tendências antagónicas.
Por um lado, acentuamos a relevância de um uso do idioma dominado pela
criatividade individual e pela propensão para introduzir na língua elementos de
diferenciação, sobretudo no léxico, mas também, algumas vezes, no que toca às
articulações fonológicas — ou à “pronúncia”, para nos entendermos. Já quanto à
ortografia, o caso muda de figura: impera nela uma estrita consciência do erro,
apoiada por instrumentos — p. ex., os prontuários ou os correctores
informáticos — que servem para regular as grafias.
No pólo oposto, está o comprazimento com que proclamamos o Português como
factor de agregação do mundo “lusófono”, composto por uns supostos cerca de 200
milhões de falantes. A magnitude de um tal universo dá que pensar; e é evidente
que ele se configura a partir de um património linguístico comum, cuja unidade,
contudo, é relativa, como, de resto, sempre acontece em circunstâncias e em
legados culturais semelhantes. Aqui vale a pena introduzir desde já uma
destrinça: unidade não significa unicidade, confusão que alguns se esforçam por
disseminar porque não leram o que foi escrito por Herculano de Carvalho
(“Unidade não significa (…) uniformidade”1) ou por Celso Cunha e
Lindley Cintra, ao afirmarem “a superior unidade da língua portuguesa dentro da
sua natural diversidade”2.
E todavia, parece óbvio que, num mundo reconhecido como globalizado, a
consolidação de grandes blocos geo-culturais pode ajudar a salvaguardar
interesses comuns, bem como singularidades no interior desses blocos, em
domínios que estão para além da língua, mas que com ela se articulam: na
literatura, nos negócios, na diplomacia, nas organizações internacionais, na
ciência, etc. E contudo, no caso de um idioma com o trajecto histórico do
Português (poderei voltar a isto, para desarmadilhar as absurdas comparações do
costume, com o espanhol e com o inglês), essa consolidação não se faz sem
instrumentos reguladores. Como quem diz: há idiomas cuja afirmação depende
também de opções estratégicas que ajudem a compensar o poder hegemónico de duas
ou três línguas com dimensão efectiva ou tendencialmente global. Sabemos bem
quais são essas línguas, nos nossos dias (o inglês, o espanhol); supõe-se que,
no futuro, serão também o mandarim e o árabe.
3. É no equilíbrio instável entre uma tendência inovadora (ou “libertária”)
e uma tendência reguladora (ou “normalizadora”) que as grandes línguas de
cultura vão fazendo o seu caminho; e é da gestão daquele equilíbrio que depende
a possibilidade de um idioma como o Português preservar alguma coesão, sem prejuízo
da tal criatividade. Sabem-no bem os professores que quotidianamente convivem
com a necessidade de explicar aos seus alunos que a famosa pontuação de José
Saramago ou o léxico de Guimarães Rosa têm razões literárias que a razão
gramatical e vernacular desconhece; e sabe-se bem que escritores que hoje são
clássicos (um Garrett ou um Eça), no seu tempo foram algumas vezes apostrofados
como ignorantes do vernáculo.
Estas são as bases em que fundo a minha reflexão sobre a questão do acordo
ortográfico, remetendo para questões de índole histórica, sociolinguística e
político-cultural, todas conduzindo a decisões de política linguística que são
determinantes para a adequada resposta solicitada por aquelas questões. A
consagração de um acordo ortográfico entre os países de língua oficial
portuguesa é, neste contexto, uma decisão estratégica de capital importância.
Sei bem que há razões de vária ordem que podem interpor-se entre a grande
razão estratégica que motiva o acordo ortográfico e a sua efectivação. Razões
de índole educativa, razões de natureza económica, razões de feição simbólica,
razões afectivas, até mesmo razões técnico-linguísticas. Todas elas merecem ser
apreciadas; nenhuma delas chega, só por si, para pôr em causa as consideráveis
vantagens de um instrumento que seguramente ajuda a decidir esta coisa muito
simples: queremos ou não queremos que a Língua Portuguesa exiba a coesão
relativa que ajude a viabilizar a sua existência plurinacional, multicultural e
pluricontinental, com estatura e com estatuto na cena internacional e com
as vantagens políticas, económicas e culturais daí decorrentes? Se queremos,
então vamos em frente com o acordo ortográfico; se não queremos, então
esqueçamos o acordo ortográfico. Só que, depois, não haverá legitimidade para
queixas, se o isolamento linguístico português (ou seja: dos portugueses) vier
a ser o último reduto dos lusitanos encerrados numa recôndita aldeia resistente
à mudança e ao moderado reajustamento da ortografia. Falo, evidentemente,
pensando no horizonte de décadas ou de séculos, não tanto olhando para o
imediatismo dos negócios em curso e dos seus pontuais ganhos e perdas.
4. Chegado a este ponto, lembrarei algumas coisas simples, mas nem sempre
presentes nesta discussão.
Primeira coisa simples: um acordo é, por natureza, um acto positivo,
envolvendo um sentido de entendimento que importa enaltecer e não menosprezar.
Segundo: um acordo não é uma dogmática unificação de procedimentos, é um
encontro de vontades, fundado no reconhecimento da dignidade das partes, sem
preconceitos, complexos ou reservas mentais. Terceiro: um acordo, por ser um
entendimento, implica disposição para o diálogo e para abertura, não o
fechamento em comportamentos autistas. Quarto: um acordo implica também o
pragmatismo que leva a que se concorde no que é possível concordar, sem
prejuízo de diferenças que não põem em causa o essencial da concordância. Por
fim: se um acordo incide na ortografia, então reconheça-se que ele visa aquele
domínio linguístico que é mais convencional e susceptível de reajustamentos
rapidamente incorporados pelo uso e sobretudo pelas crianças, que são os
falantes do futuro. Não tenham receio os educadores: o que está em causa neste
acordo ortográfico é aproximar a grafia da articulação fonológica (aproximar,
não identificar) ou, noutros termos, o modo como escrevemos do modo como
falamos. Já o perguntei e repito-o agora: há alguma ofensa cultural, se passo a
escrever “elétrico” em vez de “eléctrico”? Houve desrespeito pelo idioma de
Alexandre Herculano, pelos legisladores do Liberalismo ou pelos cidadãos
letrados seus contemporâneos, quando passámos a escrever-se “fósforo” ou
“exausto”, em vez de “phosphoro” ou “exhausto”?
4. A estas perguntas acrescento outras que, para mim, são claramente
retóricas.
Primeira pergunta: deve Portugal manter-se agarrado a uma concepção
conservadora da ortografia, como se ela fosse o derradeiro baluarte da
identidade portuguesa? Serão os interesses das editoras, por muito respeito que
me mereçam (e merecem), absolutamente determinantes para condicionarem decisões
de amplo alcance e alargado espectro cultural? E podem alguns portugueses
persistir em encarar o Brasil como um parceiro menor neste processo ou até como
um inimigo? É curial ou inteligente ignorar o muito que o Brasil faz, por
muitas vias, para a afirmação internacional da Língua Portuguesa? É
politicamente acertado ignorarmos a crescente aproximação, em vários domínios e
também no do idioma, dos países africanos de língua oficial portuguesa em
relação ao Brasil? Mais uma pergunta: se no futuro os países africanos de
língua oficial portuguesa e também o Brasil, se entenderem quanto à adopção de
uma ortografia comum, em que posição fica Portugal? E por fim: tem Portugal o
direito de colocar obstáculos, as mais das vezes artificiais ou fundados em
interesses económicos, a um entendimento que não afecta identidades nem
legítimas singularidades linguísticas?
5. Posto isto, enuncio algumas questões impertinentes e uma traumática. E
fá-lo-ei tentando seguir uma trajectória que vai do particular para o geral.
Primeira questão: a das deficiências do Acordo Ortográfico, que é também a
das imperfeições da língua. As línguas não são entidades perfeitas; nenhuma
língua o é, antes de mais porque qualquer língua é um produto dos homens – que
são seres imperfeitos. Projectam-se nas línguas pequenas incoerências e
discretas contradições, discrepâncias e dúvidas persistentes. Por isso mesmo,
existem instrumentos de regulação e de clarificação (dicionários, gramáticas,
prontuários, etc.) que nos ajudam a lidar com as dificuldades, com as excepções
e com as imperfeições das línguas. Imperfeições que, note-se, são muitas vezes
o saboroso tempero estilístico que os idiomas nos reservam. Em certos momentos,
procuramos, invariavelmente de forma árdua e não raro controversa, estabilizar
a língua, sabendo que o fazemos sempre de forma algo artificial, para tentarmos
disciplinar um bem que não é individual, mas colectivo.
Foi assim em 1990, quando um grupo de reputados académicos, linguistas e
historiadores da cultura propuseram um acordo ortográfico que superava,
corrigindo-a, uma proposta anterior (de 1986), porventura excessivamente
“interventiva” e redutora (a propósito: alguns testemunhos que hoje são citados
como reportando-se ao acordo de 1990 referem-se ao de 1986. Basta verificar as
datas; e é bom ser rigoroso com elas).
Falo aqui de incoerências linguísticas não com um sentido reprovativo (que
seria absurdo), mas tão-só para notar que elas são naturais e toleráveis. No
Português que hoje escrevemos (repito: no de agora, não ainda no que virá
depois do Acordo!), grafo “erva”, “herbário” e “ervanário”, ou seja,
avanço e recuo, em palavras da mesma família etimológica, em relação ao uso ou
ao desuso do “h” inicial; e o mesmo “h” desapareceu já em “desumano” (tendo
persistido em “humano”), sem ofensa da etimologia, num acto de simplificação
que aceitamos sem pestanejar. Mais: no Português actual, mantemos a consoante
surda em “acto”, mas já a dispensámos em “contrato” e em “aflito” (antes, “aflicto”);
perdemo-la em “prático”, mas conservamo-la em “eléctrico” ou em “ecléctico”.
Escrevemos “pronto” (e já não “prompto”), mas parece que alguns resistem em
passar a escrever “perentório” em vez de “peremptório”, usando ainda aquele “p”
(que ninguém pronuncia) bem à vista. E abundam as homografias, tratando o
contexto de desfazer eventuais confusões: escrevo “gelo” (substantivo) e “gelo”
(do verbo gelar), sem necessidade de acento gráfico para sabermos onde está o
“e” aberto e onde está o fechado; e “consolo” (substantivo) e “consolo” (“eu
consolo”, do verbo “consolar”) e “colher” (de chá ou outra) e “colher” (verbo);
e “acordo” (ortográfico, pois então) e “acordo”, como verbo (por exemplo:
“acordo para as vantagens do acordo ortográfico”). E há o famoso hífen:
insistimos nele nas formas monossilábicas “hei-de” e “há-de”, mas não fazemos
questão nele em “havia de”.
Repito: estes são exemplos de discrepâncias no Português actual, não ainda
o efeito da aplicação do Acordo Ortográfico. Não percebo por que razão os
detractores do dito Acordo se não escandalizem com tais coisas, mas são capazes
de verberar as oscilações (em menor grau, diga-se) que ele consente.
6. Segunda questão: a questão dos escritores ou a enganosa apologia da
liberdade linguística.
Não raro ouvimos fazer a apologia da irrestrita diferenciação, dentro do vasto
universo linguístico do Português. E ao valorizarmos o enriquecimento
idiomático determinado pelos usos “excêntricos” (num sentido não depreciativo)
do Português, erigimos esse poder criativo em regra (ou melhor: anti-regra), no
limiar da total desregulação. É aqui que entra a questão dos escritores e da
sua natural vocação para a subversão linguística; só que a criatividade
linguística de Ondjaki, de Mia Couto, de Lobo Antunes ou de Raduan Nassar
desenvolve-se no quadro da criação literária, lá onde as normas
morfossintácticas, os repertórios lexicais ou as convenções semânticas podem
ser livremente subvertidos, sem controlo que se tolere. E também, se
assim o desejarem, a própria ortografia.
Dir-se-á (e é verdade) que aquela vocação subversiva é quase sempre inspirada
pela capacidade de “escutar” a vibração da língua viva, com incorporação
literária de elementos dialectais e de variações sociolectais; a isto
acrescento que aquilo que a literatura deforma ou refigura, pela
sua dinâmica inovadora, só lenta e cautelosamente é ratificado pelo uso
colectivo, sempre apoiado em instrumentos normativos. São eles que, por fim e
goste-se ou não, asseguram a coesão possível do idioma que, sem essa coesão,
teria tantas “normas” quantos os seus falantes. E isto também no campo da
ortografia.
7. Terceira questão: a questão da indústria editorial ou a impertinente
injunção económica. Trata-se aqui de saber que instância nos rege, quando está
em causa uma decisão como a de levar à prática o Acordo Ortográfico: a
instância dos interesses económicos ou a instância das prioridades de política
de língua.
Antes de passar adiante e sem falsa retórica, declaro: tenho o maior
respeito pelos editores sérios, aqueles que encaram os textos (às vezes,
os meus textos) como veículos de cultura que é preciso editar com competente
zelo e mesmo, quando é o caso, reeditar. Digo reeditar e não apenas reimprimir,
porque às vezes é preciso corrigir, acrescentar, suprimir. Só que, agora que os
procedimentos de reprodução dos textos uma vez editados se tornaram
extraordinariamente sofisticados e de muito célere activação (o que não se
verificava há meio século), é forte a tentação para reutilizar para todo
o sempre matrizes tipográficas que, na prática, tornam os textos imutáveis. É
rápido, é barato e favorece o negócio, coisa que até seria de louvar (digo-o
sem reservas), se não fosse o caso de assim se tender a “mumificar” a língua.
Facilmente se percebe que alterações, mesmo que modestas, na ortografia obrigam
a encarar de outro modo a edição de um texto: obrigam a reeditar e não apenas a
reimprimir.
Parece, além disso, que a indústria cultural portuguesa, com a vigência do
Acordo, enfrenta dois problemas — e isto talvez explique algumas resistências e
não poucos protestos. Um desses problemas chama-se mercado africano, um mercado
até agora “blindado” pelo uso da grafia portuguesa e fechado à variante
brasileira do Português. O outro problema vem do poder económico das editoras
brasileiras, aparentemente ameaçadoras para a indústria editorial
portuguesa. É isto que me dizem, porque, por mim, não vejo as coisas assim.
Pelo contrário: acho que as editoras portuguesas têm argumentos para fixar ou
(se for o caso) reconquistar o mercado africano; e penso que uma grafia comum
(excepções à parte) a todos os países de língua oficial portuguesa, abrirá um
mercado muito amplo para a edição portuguesa, com destaque para o gigantesco
mercado brasileiro.
De resto, esta questão dos editores pode bem ser uma falsa questão. Não é
verdade que uma editora, em Portugal, já publicou um dicionário segundo a
grafia do Acordo? Terá essa editora o exclusivo do dinamismo editorial? Não
será este um exemplo a seguir? E não é verdade que alguns editores já se
manifestaram preparados (um deles, embora adversário do Acordo, disse-mo
expressamente) para os desafios que aí vêm?
Todas as contas feitas, não partilho do apocalíptico pessimismo dos que
profetizam uma hecatombe bibliográfica, com milhões (assim mesmo) de livros
“lançados ao lixo”, por causa das mudanças trazidas pelo Acordo, mudanças que,
para alguns, umas vezes são excessivas, outras vezes são meramente residuais,
dependendo das ocasiões. Não haverá tal hecatombe; nunca se viu nem verá tal
coisa, porque um generoso período de transição assegurará o pacífico convívio
de livros pré-Acordo com livros pós-Acordo. Há memória de alguma biblioteca ter
sido destruída quando o Acordo de 1945 entrou em vigor em Portugal? Alguém
inutilizou algum livro quando passou a escrever “aflito” em vez de “aflicto”,
“quer” em vez de “quere”? E foi impossível fazer conviver por algum tempo as
grafias “mãi” e “mãe”?
Se olharmos estas questões com honesta serenidade e não com demagógico
impulso catastrófico, não seremos ludibriados por “exercícios” como
aquele que agora nos foi facultado, pomposamente chamado “estudo”. Comparam-se
traduções, feitas respectivamente no Brasil e em Portugal, de duas obras
originalmente em língua inglesa, com o intuito de provar quão diferentes são as
duas variantes do Português, a portuguesa e a brasileira. E comparou-se a
versão original de um livro de Paulo Coelho (O Diário de um Mago) com uma
versão adaptada do mesmo livro, em Portugal. O que se provou? O que já se
sabia: que duas traduções do mesmo texto são sempre inevitavelmente
diferentes; que um escritor que assim se deixa adaptar não é escritor que
se preze (isto até já se sabia, antes do tal exercício); por fim, que o léxico
e a sintaxe do Português de Portugal e do Português do Brasil revelam
singularidades próprias. Quanto à questão ortográfica — nada.
8. Quarta questão: a questão dos brasileiros, questão que inclui
traumas por resolver e o medo das “cedências”. Isto para já não falar num outro
“argumento” que de vez em quando ainda assoma: o de que por causa do Acordo
Ortográfico passaríamos a “falar como os brasileiros”. “Como os brasileiros”
fala-se nas telenovelas da Globo, sem escândalo público e até com notórias
consequências lexicais, se olharmos com atenção para o Português que se fala em
Portugal. Vale a pena repetir o óbvio: um acordo ortográfico não implica que se
fale como os brasileiros; as suas consequências, no plano fonológico (no do
sotaque, para nos entendermos), são praticamente nulas e inexistentes, no domínio
da sintaxe. Ou seja: naqueles âmbitos em que os brasileiros “falam como
brasileiros”.
Há um complexo que, no fundo, persiste entre nós: o de uma concepção da Língua
Portuguesa como património exclusivo dos portugueses. Ora não só o idioma não é
propriedade exclusiva dos portugueses como o seu futuro depende (e muito) da
capacidade de afirmação internacional de um país com o potencial económico e
geopolítico do Brasil. Por isso mesmo, bom seria que uníssemos esforços (que
nos puséssemos de acordo), em vez de cavarmos discrepâncias baseadas em traumas
por superar.
Os traumas antibrasileiros são intoleráveis e absurdos, sobretudo quando
temos presente o notável exemplo de cooperação de dois eminentes linguistas, um
português e um brasileiro, Celso Cunha e Lindley Cintra, que escreveram a
modelar Nova Gramática do Português Contemporâneo. E quem tiver dúvidas
acerca da dimensão científica e cultural do Brasil, faça o favor de consultar
World Ranking of Universities (em http://www.webometrics.info/); aí verá que a
primeira universidade de língua portuguesa é a Universidade de São Paulo, no
lugar 114; a segunda é a Universidade de Campinas (Unicamp), no lugar 197; e a
primeira universidade portuguesa (a Universidade Técnica de Lisboa), surge num
honroso 300.º lugar, um pouco antes da minha alma mater, a Universidade de
Coimbra, no 375.º lugar. É preciso dizer mais?
9. Por fim, quinta e última questão, a questão do espanhol e do inglês ou as
comparações absurdas.
Ouço dizer: o Inglês não tem acordo ortográfico e passa muito bem sem
ele. Omite-se aqui que as oscilações ortográficas em Inglês (que, aliás, estão
dicionarizadas) são muito reduzidas e também que, nele, a relação entre grafia
e pronúncia é muito mais convencionada do que em Português; e falta aprofundar
um pouco a questão, para chegarmos a uma resposta óbvia: o Inglês não tem
acordo ortográfico, porque simplesmente não precisa dele. E não precisa porque
o seu esmagador poder linguístico é sobretudo um efeito de outros poderes que
arrastam e praticamente impõem aquele poder linguístico: o poder político, o
poder económico, o poder tecnológico, o poder cultural, etc. Numa palavra: o
poder.
No caso do Espanhol importa ir um pouco mais longe e
lembrar que a emancipação política da América Latina de colonização
espanhola conduziu à fragmentação em cerca de uma vintena de países. Isso
permitiu a sobrevivência de Espanha como uma espécie de “metrópole”
europeia com um certo ascendente no plano linguístico; um
ascendente que se reforça pelo labor de uma vigorosa política de difusão da
língua, com a qual Portugal muito tem a aprender. Nessa política de língua
intervém a Real Academia Española, sendo inequívoco que esta
última tem, no universo da Língua Espanhola, um prestígio normativo
considerável: tenha-se em vista a capacidade de determinação e também de
incorporação lexical que o Diccionario de la Lengua Española
possui, no vasto universo que cobre; uma capacidade de determinação que,
evidentemente, vale por um amplo, tácito e respeitado acordo linguístico.
Acresce a isto que, nos nossos dias, a Espanha é também uma potência económica,
o que ajuda a fazer do Espanhol (e já não apenas naquele vasto espaço
post-colonial, note-se) uma espécie de “inglês latino”.
10. Termino. Torna-se absolutamente necessário que a
questão do Acordo Ortográfico seja equacionada não apenas de dentro para dentro
(como alguns fazem em Portugal), mas sobretudo de dentro para fora. Ou seja:
pensando o Português em função de um mundo mais amplo do que o país que lhe deu
origem. E sendo assim, que a questão seja vista também como um desígnio
colectivo e não reduzida à estreita defesa de interesses particulares ou à
expressão de sensibilidades irritadas. O que está em causa é um acordo
estratégico, não uma unificação linguística absoluta, do mesmo modo que pensar
uma língua sem regulação é convidar à sua rápida fragmentação. Seguramente, não
é isso que queremos.
1 Cf. A Língua como Factor de Unidade, Coimbra,1968,
p. 12
2. Nova Gramática do Português Contemporâneo. 17.ªed.,
Lisboa: Edições João Sá da Costa: 2002, p. XIV
IN:
www.ciberduvidas.com