segunda-feira, 5 de outubro de 2009

GRAMÁTICA?

“…E digo matado porque, sendo verdade que porco que foi morto morto está, também é de ter em conta que o facto de ter sido morto implica, desde logo, e até por imperativos gramaticais, que alguém o tenha matado, ficando logo de fora a hipótese de ter morrido de morte natural, e ainda bem que assim não é porque, se assim fosse, aquele corpo de porco só aproveitaria aos vermes, dos quais, depois de enterrado, seria pasto e repasto, com o prejuízo inerente que daí resultaria para quem o tinha criado com tantos cuidados e canseiras, sem nunca lhe ter faltado com a mais mínima vianda.”
A transcrição com a qual inicio este texto, que espero não seja passivo e possa provocar alguma discussão, foi retirada de um livro que aqui mencionarei algumas vezes, tem o título sugestivo de “ A Pita do Ti Zé Plim”, foi editado pelo Grupo Cultural e Desportivo de Fóios, tem uma escrita capaz de proporcionar alguns momentos agradáveis de leitura, mas é quase um ilustre desconhecido porque não teve uma editora/distribuidora que se encarregasse de o fazer chegar aos locais de venda. Aqui para nós, sem que mais ninguém se inteire porque é feio gabarmos a nossa própria filha, até fui eu que tive o gozo de o escrever.
Esta transcrição foi aqui colocada não de uma forma aleatória. Sim porque ela constitui, de certa maneira, uma pequena lição de gramática e a gramática, ou, se quiserem, o conhecimento explícito da língua, é parte integrante, não podia deixar de o ser, dos novos programas de português que durante este ano lectivo iremos analisar e sobre os quais se trabalhará nas escolas.

Li com atenção a introdução e a 1.ª parte do documento que incorpora os novos “Programas de Português do Ensino Básico” e quero aqui deixar algumas questões e opiniões para reflexão que emergiram da leitura da introdução do referido documento.

“ Os programas que agora se apresentam serão um dia substituídos por outros.”
Quando?
Será que estes novos programas vão mesmo entrar em vigor?
E, se entrarem em vigor, será por tempo necessário a que surtam os efeitos desejáveis?
Não seria bom definir-se um tempo mínimo de validade?
Não se terá andado a brincar demasiado às reformas?
O sistema educativo não terá estado demasiado dependente das vontades políticas dominantes?
O sistema educativo não terá andado demasiado tempo algo, ou bastante, descarrilado?

“ Deve ser instituído ou reforçado, na aula de Português, o ensino da gramática…privilegiando-se antes uma gramática normativa, como ponto de partida para a revalorização da gramaticalidade do idioma”.
Gramática normativa, sim, não posso estar mais de acordo. Tenho é sérias dúvidas de que não se esteja a esgotar o tempo para actuar… A bola de neve tem vindo a engrossar há muitos anos e, pelos vistos, e ouvidos, continua a ter matéria-prima para se tornar ainda maior.
O 25 de Abril, momento mágico de tão boa memória, trouxe a massificação do ensino, é verdade, mas também trouxe a necessidade de se recrutarem, fosse como fosse, e tantas vezes sem qualquer crivo merecedor desse nome, professores das diversas disciplinas, e também, por conseguinte, de Português, na maior parte dos casos de baixíssima competência científica.
Esses professores prepararam outros e os problemas lá se foram arrastando…Já trabalhei com diversos estagiários de Português e, por isso, penso que sei do que falo.
Atendendo aos desvios a que diariamente vamos assistindo, na Escola e fora dela, e que vão ferindo os ouvidos de quem teve formação em gramática clássica, não sei se ainda iremos a tempo de ensinar a gramática normativa ou se a solução não será reformular a gramática, adaptando-a ao uso que se vai fazendo da língua.
E pior será se o sistema demorar mais alguns anos a instituir ou reforçar o ensino da gramática normativa porque tenho dúvidas de que, nessa altura, não se tenha já aposentado a grande maioria dos professores conhecedores dessa gramática.
Como professor que sou, faço questão de afirmar que os problemas que estou a levantar não têm origem nos próprios professores, mas, sim, no sistema. E, por isso, já basta de considerar os professores como o bode expiatório de pecados, não sei de quem porque o sistema parece não ter rosto, mas que não são deles.
“É verdade que na Assembleia lá se vai vendo um ou outro deputado dormido, ou talvez dormindo, não importa para o caso extrapolar sobre qual o particípio mais conveniente, se o passado se o presente, importando, sim, constatar o que é mais do que óbvio, que a Assembleia não oferece o mínimo de condições físicas para os deputados poderem fazer uma sesta retemperadora, sendo uma dor de alma observar os seus estranhos cabeceios indumentariados de fato e gravata…”
Esta passagem foi extraída do livro atrás mencionado e reflecte a opinião do narrador do mesmo sobre a nossa Assembleia, a qual não sei se pode ou não ser tida como o rosto do sistema…
Já agora, quero aproveitar, até porque o assunto parece vir mesmo a talho de foice, para dizer que não deve contribuir de todo para a realização pessoal ser deputado nas condições actuais em que tem vigorado uma partidocracia asfixiante que não dá azo nem asas à criatividade pessoal. Os deputados são chamados, ia a dizer acordados, a votar mas ai deles se não votarem na proposta do partido. O que faz com que antes da votação já quase se possam contar os votos. E nos faz reflectir nas seguintes questões. Será que não há ali gente a mais e que a proporcionalidade não se poderia conseguir com metade dos membros ou até mesmo um terço? Por que razão são tantos e com tanta mordomia? Não seria uma maneira de os cofres do Estado fazerem uma boa poupança se se fizessem uns cortes?
Aproveito também para transcrever mais uma passagem de “A Pita do Ti Zé Plim” em que se fala do 25 de Abril e algo mais e acrescento que a minha opinião coincide com a do narrador, não vá ser mal enquadrada a referência que fiz ao 25 de Abril…
” O nosso general sem medo não conseguiu, por desgraça, aquilo que tanto desejava, demitir o chefe do governo, que continuou grudado à cadeira do poder, na qual viria até a finar-se sentado, porém continuando a governar para além da sua morte, por estranhas obras do Catano (deixem-me explicar que um e fazia parte desta palavra mas, não sei por que motivo, talvez por simples teimosia, recusou-se a ocupar o lugar que lhe era devido no ditongo que integrava e saltou para fora da dita). Ao contrário, e muitos o lamentaram em silêncio, foi o regime que o assassinou numa cilada que lhe armou em Villa Nueva Del Fresno.
Ao que parece, foi por causa da brutalidade desse assassinato que muitos dos freixos que aí existiam terão vindo a secar de tristeza e dor, desde aquele fatídico dia do ano de 1965.
Nove anos e uns meses antes de que Abril nos devolvesse a esperança e a dignidade amordaçadas, quando, naquele dia 25 da melhor memória, o povo, rejubilando, saiu à rua para vitoriar e se unir aos soldados portugueses que faziam cair o velho regime tirano, união, até aqui nunca vista, cuja magia logrou transformar os canos das espingardas em macios caules onde floriram cravos vermelhos de liberdade e de vida.”


“ Se o ensino do Português… se desenrola numa aula específica e com um professor formado para o efeito, isso não significa que nessa aula e com esse professor se esgote, para o aluno, a aprendizagem do idioma e a sua correcta utilização”.
Totalmente em sintonia!
Só que isso pressupõe que o professor está, efectivamente, preparado para o efeito…E que Deus me perdoe, se Deus estiver disponível para se meter num assunto tão melindroso quanto este, e os professores, meus colegas, não me levem a mal, porém eu tenho, como já atrás afirmei, reservas quanto a esta preparação, sobretudo no domínio científico.
Quando a torto e a direito se dão pontapés na conjugação pronominal e se empregam formas como"direi-lhe", “pediria-lha", "ficará-lho" e até em letras de canções se canta "sempre hei-de-te amar", algo vai mal no país da gramática.
E quando na TV, órgão de comunicação de massas, se ouve, num noticiário, algo como”João Pinto não treinou-se hoje com o restante plantel” ou em plena transmissão de um jogo entre clubes de primeira água o comentador diz, a certa altura, ”os jogadores nem sabem o que hádem fazer com a bola”, ou numa reportagem, em directo do local, o jornalista afirma" haviam aqui dois carros quando o prédio desabou " somos forçados a não levar muito a sério os órgãos de comunicação de massas como fontes fidedignas da aprendizagem correcta do Português.

Joaquim Dias

2 comentários:

  1. Estou completamente de acordo com o Joaquim, sobretudo no que respeita ao último comentário! Confesso que já "perdi a vergonha" e me lancei, mais do que uma vez, nessa cruzada da e pela língua, em reuniões das mais diversas...na escola!!!Isto significa que são reuniões COM PROFESSORES!!! Ouve-se de tudo: "deiam-me", "quaisequeres", "aderência à greve"... Mas, tenho que partilhar algumas das mais "deliciosas": um colega a dizer que "foi pior a ementa que o soneto"...e eu a imaginar um cardápio com laivos camonianos!!! Ou, ainda, o outro colega que insiste em brigar ideologicamente quando pretende concordar absolutamente connosco: "a minha opinião vai de encontro à tua!"...Também há o tu "fizestes, acabastes, pensastes?"...Enfim!!!Lá diz o ditado que um "daqueles quadrúpedes" carregado de livros...Já não existe brio?Para não falarmos em profissionalismo, claro!

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  2. Joaquim, afinal os Novos Programas serão, ao que parece, só novos nas escolas,lá mais para outro ano lectivo (qual?)!A nossa ministra está ainda a escrever a história de "Uma Aventura no Me".Lá personagens não lhe hão-de faltar...Só formandos são 900(?)onde nós também nos incluimos. Para si,que vem de longe, para a formação, a minha vénia.A bem dizer, a DGIDC quis dar oportunidade para os profs darem umas curvas pelo país.Isto do passeio, ainda não percebi, se é serviço lectivo ou não lectivo?!

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